domingo, 20 de dezembro de 2009

Como reconhecer um direitista enrustido?


Listinha básica (porque, como bem sabemos, ninguém tem coragem de admitir que é de direita no Brasil, mas prestando atenção aos discursos e atitudes das pessoas fica fácil identifica-los.


1) O direitista enrustido costuma bradar que odeia política e políticos em geral e que “não existe esse negócio de direita e esquerda”. Mas, na prática, é diferente. O cara vota no Maluf, em alguém do PFL, do PSDB ou em qualquer um que for o anti-petista ou anti-esquerdista da vez. Se Adolf Hitler em pessoa ressuscitar e chegar ao segundo turno contra Marta Suplicy, por exemplo, adivinhem só em quem ele vai votar?

2) Eles adoram xingar os abusos da Telefônica, da CPFL e os pedágios caríssimos das estradas. Enquanto você concorda, são só sorrisos. Porém, na hora que você lembra que a culpa de tudo isso recai sobre as privatizações lesa-pátria ocorridas nos oito anos de governo FHC, ele fecha a cara e começa a defendê-las, alegando que “antes a gente tinha que esperar anos pra conseguir um telefone” e que a culpa é das “agências reguladoras” (que também foram criadas pelo FHC). Aí você explica que não é contra parcerias público-privadas, desde que elas sejam feitas em favor da população e não de um grupelho de “amigos do rei”. E então faz aquela fatídica constatação: “Realmente, hoje você consegue uma linha rapidinho, só que paga as tarifas mais caras do mundo, recebe em troca um serviço horrível e não tem ninguém para reclamar”. Se depois disso a pessoa se enfurecer e começar a falar mal do Lula, do PT ou de Cuba, pode ter certeza que você está diante de um direitista.



3) Toda pessoa de direita acredita piamente que as pessoas são pobres porque querem. “O problema do Brasil é que pobre não gosta de trabalhar”, costumam repetir. De tanto ler a Veja e ver o Jornal Nacional, eles passam a crer que o sujeito mora numa favela e só consegue trabalhar de lixeiro porque “não quis estudar” ou “não se esforçou o suficiente para subir na vida”. Quando você lembra que essas pessoas não têm condições nem para comer, são obrigadas a trabalhar desde cedo largando os estudos e, devido a tudo isso, só conseguem arrumar subempregos, o direitista novamente vai fechar a cara e começar a resmungar coisas sem nexo do tipo: “Pode ser, mas se um vagabundo desses entrar na minha casa eu meto tiro!”.

4) Ainda em relação aos excluídos, o direitista vive dizendo que a solução para os problemas sociais do país é “investir em educação”. Claro que, como bom esquerdista, você vai concordar com ele. Mas você será obrigado a explicar que a direita, que governou o país desde que o Cabral invadiu essas terras, nunca investiu em cultura e em educação. Pelo contrário. E foi durante a ditadura militar de direita que o sistema público de ensino sofreu seu golpe mais duro, ficando totalmente sucateado. Então vai lembrar ao direitista que se todo mundo tivesse estudo e condições iguais para “subir na vida”, ele (ou ela) seria obrigado(a) a fazer faxina na própria casa ou a recolher o lixo da rua, já que ninguém mais precisaria se sujeitar a trabalhar nesses subempregos, exceto de forma voluntária para ajudar a comunidade - igual acontece em Cuba – ou no mínimo ganharia um salário igual ao de um médico. Pronto. Depois dessa é melhor você correr para um abrigo!

5) Pessoas de direita tendem a ser extremamente incoerentes. Via de regra, elas falam mal de tudo (política e políticos, programas na TV, filmes, jornalistas, sexualidade, música) e repetem que “o mundo está perdido”, “nada mais presta” ou “na minha época não tinha nada disso”. E geralmente terminam suas reclamações dizendo que a única solução para tudo isso é “jogar uma bomba atômica e começar tudo de novo”. Aí, logo depois, eles afirmar que são “conservadores”...


6) Conheço uma dúzia de caras, por exemplo, que adoram o Pink Floyd (até tocam suas músicas em bandas cover) enquanto repetem jargões que deixariam até um nazista envergonhado. “Vai dizer que o Roger Waters é petista agora??” costumam vociferar quando você aponta essa incongruência a eles. Obviamente, os direitistas confundem ser “de esquerda” com “ser petista” ou “ser comunista”. Quando eles cantam “Imagine”, do Lennon, com certeza não se tocam que aquela é uma música que contesta o sistema vigente que eles defendem, ou seja, é de esquerda. E aí, voltamos à lógica esquizofrênica exposta acima: o direitista enrustido é contra tudo, acha que o mundo está perdido, que o ser humano não presta e que político é tudo FDP, mas na hora das eleições, dá seu voto aos sujeitos mais conservadores, reacionários e corruptos que existem. Justamente aqueles que, além de não mudar nada, vão deixar tudo ainda pior. Aqueles que, como diz Mino Carta, “querem deixar as coisas como estão para ver como é que ficam”.


7) Uma forma fácil de identificar um(a) direitista enrustido(a) é começar a falar sobre Cuba. Disfarçado no discurso “a favor da democracia e da liberdade”, você vai poder identificar todos os clichês mais obtusos que a mídia de direita usa para doutrinar os incautos. Não adianta você dizer que antes do Fidel, Cuba era uma ditadura de direita na qual a maioria esmagadora da população passava fome e não tinha direitos. Nem que, depois do Fidel, ninguém mais passa fome e todos têm acesso gratuito à educação, à saúde, à alimentação e ao transporte. Também é inútil explicar que, em Cuba, não existem crianças na rua pedindo esmola e que a maioria da população tem curso superior adquirido gratuitamente. Pois o direitista vai jogar na sua cara que em Cuba não existem carros zero km, nem telefone celular, nem shopping centers, nem DVD, nem liberdade de imprensa. Sim, trata-se da mesma pessoa que acabou de vociferar que “o mundo está perdido”, “na televisão só tem porcaria”, “jornalista é tudo safado e a imprensa é uma merda”, “hoje em dia essa molecada só quer gastar dinheiro com lixo” e “o problema do Brasil é a falta de educação e cultura”. Eu disse que coerência não é o forte deles, não disse?

8) Direitista enrustido que se preze é a favor do neoliberalismo. Não, ele não tem idéia do que é isso nem quem inventou esse negócio, mas como ouviu o Arnaldo Jabor e o Django Mainardi dizendo que era a solução para os problemas do mundo, ele acreditou. E passou a repetir tudo como um bom papagaio: são contra o Estado e as Estatais (mas não reclamam quando dinheiro público é usado para salvar bancos privados da falência), a favor das privatizações (sim, as mesmas que o fazem espumar de ódio contra a Telefônica) e pregam a “redução dos impostos” (ao mesmo tempo em que choram de raiva por terem que pagar fortunas para ter plano de saúde privado). Como são manipulados pela mídia de direita, adoram meter o pau no governo Lula, não reconhecem nenhum mérito nele e acreditam (mesmo!) que tudo de bom que acontece hoje no país é resultado do governo FHC (embora eles odeiem política e todos os políticos, inclusive os do PSDB, lembram?).


9) Outra característica marcante da turma da direita é a certeza absoluta que são donos da verdade. Quando eles falam sobre qualquer assunto, não estão emitindo uma opinião, mas sim uma verdade única e incontestável. A melhor forma de fazer um tipinho desses sair do armário e mostrar sua verdadeira face é simplesmente contestá-lo com argumentos sólidos e muita calma. Eles até vão tentar rebater, mas quando perceberem que o que estão dizendo é APENAS uma opinião e que, por mais que tentem te ridicularizar ou denegrir, você não vai mudar a sua opinião, o direitista enrustido vai então partir para ataques chulos e de cunho pessoal, como que tentando convencer os outros que o que você diz não tem valor, afinal trata-se de uma pessoa má, feia, fedida, chata ou qualquer outra coisa. Em última instância, o direitista enrustido vai perder todas as estribeiras e acabará apelando para o último recurso usado na tentativa de calar o interlocutor: ameaçar processá-lo!

E então? Você conhece um não conhece um monte de gente assim por aí? Vai ver você é uma delas. Mas não se desespere, pois sempre é hora para mudar.

E, como diz John Lennon, eu espero que um dia você possa se juntar a nós para que o mundo possa ser um só...  (via André Lux, jornalista e crítico-spam (de esquerda))




Para se identificar alguém de direita é preciso observar o conjunto dos atos e o tom do discurso, uma mistura de falsa simulação ideológica que inclui a negação das divisões políticas ou, no limite, da própria política. Outra saída é dizer que odeia política, que é apolítico (?), que político é tudo canalha, que não vai mais dar o voto para ninguém. Mentira: vai votar na direita. (via Leandro Fortes)

Chega a ser engraçado essa coisa de, no Brasil, ninguém ser de direita. Por aqui, alguém só se diz de direita quando quer chocar ou demonstrar certa ferocidade política e pessoal do tipo “sou de direita mesmo, vai encarar?”. Coisa de cabo eleitoral da TFP e bestas-feras do gênero.

Mas a regra é diferente. Quem é de direita só abre a boca quando percebe receptividade no ambiente. Mais ou menos como quem é racista. Normalmente, para se identificar alguém de direita é preciso observar o conjunto dos atos e o tom do discurso, uma mistura de falsa simulação ideológica que inclui, necessariamente, a negação das divisões políticas ou, no limite, a própria negação da política.

Dessa forma, ao ser questionado sobre pendores ideológicos, o indivíduo de direita se sai sempre com o clichê da queda do muro de Berlim – embora a maioria apenas desconfie, ligeiramente, do verdadeiro significado do evento e do processo que o deflagrou. Depois da queda do muro de Berlim, portanto, não tem mais direita nem esquerda, é tudo muito relativo. Outra saída é dizer que odeia política, que é apolítico (?), que político é tudo canalha, que não vai mais dar o voto para ninguém. Mentira: vai votar na direita.

No Brasil, há casos clássicos de políticos e intelectuais que migraram para a direita, um pouco pelo desencanto do comunismo, pela perda natural dos ideais que a idade provoca, mas muito pela oportunidade de ficar rico ou fazer parte da elite nacional que toma uísque escocês e freqüenta balneários de luxo, ainda que forma subalterna e humilhante. Não é preciso citar nomes, mas muitos pululam pelos parlamentos, partidos políticos e redações de jornais. Pergunte a qualquer deputado ou senador se ele é de direita, e não vai aparecer nenhum.

Todo mundo tem uma desculpa para não ser de direita, mesmo os mais conservadores e reacionários, mesmo as viúvas da ditadura militar, mesmo os risíveis neodemocratas de plantão. Todos vão dizer que esquerda e direita não existem mais. Que depois da queda do muro de Berlim, etc,etc,etc.

A verdade é que ninguém quer se admitir de direita porque, no Brasil, ou em qualquer outra nação latino-americana que tenha sido submetida a regimes neofascistas comandados por generais, ser de direita tem pouco a ver com a clássica postura liberal econômica ou com a defesa das leis de mercado. Tem a ver é com truculência, violência, racismo, fundamentalismo religioso, obscurantismo político, coronelismo, ódio de classe e, é claro, golpismo. Por isso há tão poucos direitistas assumidos.

Assim, de cabeça, aliás, não lembro de nenhum. Ah, de repente me lembrei de uma confissão antológica do ex-deputado Wigberto Tartuce, o Vigão, parlamentar do PTB brasiliense, de riquíssimo prontuário policial, temeroso de ser confundido na multidão: “Eu sou de direita, mas sou honesto”. Até agora, a única confirmação das autoridades policiais é a de que Vigão é mesmo de direita. (via tudo em cima)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Faroeste Calango


Já vou logo avisando a você: O DF virou uma terra sem lei. Melhor, um faroeste, onde mandam pistolões e o restante se borra ou leva chumbo. Então, manifestantes munidos de vergonha na cara e consciência ético-política se viram em guerra contra uma frota militar de cavalos, cachorros e o mais temível dos animais, o ser humano.


O humano é temível como temíveis fomos nas ruas contra a corrupção que esfregaram na nossa cara. O humano é temível também quando não reconhece no outro o seu semelhante, e o massacra com tiros e cassetetes. Mas eu vou te deixar animado: eu provei e são de borracha. E vai ser preciso mais para frear a força da nossa insurreição. Já a manada de cavalos estava calçada com ferro mesmo. Porém, ao contrário do que imaginam, isso só nos enche de motivos para lutarmos com ímpeto e mais ímpeto. Os que achavam que as cavalgadas nos iriam desanimar acordaram debaixo de chuva de ferraduras sobre as próprias cabeças.

Na terra do faroeste, polícia bate em criança num ato pacífico, e adolescente agora apanha de professora em vez de aprender lição de cidadania. No faroeste, o bandido que aumentou mil por cento o seu patrimônio é o mocinho, e os que foram roubados, lesados por essa sujeira de cortar a carne, não podem gritar coletivamente a sua indignação, sem ter que levar pancada. A terra do faroeste enfiou a ditadura militar num fundo bolso.


E na terra do faroeste calango, me avisam para que eu tire os dizeres do inconformismo estampados no carro, alertando que levarei multa ou que as chefias irão me punir. Ora! Pro inferno com aviso de merda! Não vou pagar simpatia pra ninguém! E se vier de gracinha, já vou avisando: eu vou dar enxaqueca e trabalho. E sozinho eu não tô. Nem eu e nem a companheirada que foi presa, e nem a que foi "só" machucada, e nem as crianças. Companhia uns pros outros, na luta e até a vitória! 




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Por ortegal
http://cartadesmarcada.blogspot.com/

“Gibi” é cultura?


Em recente artigo intitulado "Mulher pelada é cultura", publicado no Site do Jornal Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/), o jornalista Gilberto Dimenstein argumentou que gibi (Histórias em Quadrinhos) e revista de mulher pelada (ele cita a Playboy) não seriam cultura.
        Dimenstein em seu texto pretende atacar o programa de incentivo a cultura do governo federal, o vale-cultura, um projeto que busca expandir as possibilidades de acesso a cultura da população brasileira, tão carente de bens culturais. Não vou entrar aqui na questão valorativa ou política do programa em si, não é meu objetivo, mas vamos discutir o conceito de cultura utilizado por Dimenstein e o porquê ele não considera Histórias em Quadrinhos como "cultura".
          Primeiramente é bom lembrar que academicamente os antropólogos não utilizam mais a palavra cultura, assim no singular, mas culturas, no plural, dando ênfase a diversidade de culturas humanas. Dimenstein ainda parece ver o mundo a partir de uma perspectiva anterior aos escritos sobre multiculturalismo, que já estão ai à pelo menos meio século, fica a pergunta: será que Gilberto Dimenstein leu algo publicado nos últimos cinquenta anos? Parece que não!
          Até porque ao se referir a revistas de história em quadrinhos ele usa o nome de Gibi, que era em si uma publicação da década de 40, que teve seu primeiro número lançado em 1939. Somente pela forma como Dimenstein nomeia estas publicações (gibi ao invés de revista de histórias em quadrinhos) temos uma ideia da mentalidade com que observa o mundo, ou seja, sua visão de mundo esta ligada à época em que nosso presidente (ou melhor ditador) era Getúlio Vargas.
     Neste caso é pouco provável que este jornalista, que posa de sabe tudo, e parece não saber nada, mas utiliza sua inserção em um dos maiores jornais do país para escrever sobre quase tudo, e entre outras coisas sobre educação, desconfio inclusive que grande parte de seu publico seja de professores, que vão aos seus escritos buscar alguma orientação a fim de consolidar sua própria visão de mundo, mas o que  encontram não é muito diferente do pensamento das normalistas dos anos sessenta.
         Aquele tipo de professora que fazia alunos decorarem textos do tipo "Ivo viu a uva" sem significado algum, ao mesmo tempo em que atacavam os chamados "gibis", que já na década de sessenta traziam textos muito mais interessantes do que aquelas velhas cartilhas empoeiradas que Dimestein insiste em não abandonar.
        Também salientamos que as histórias em quadrinhos como afirma, em diversos textos o pesquisador Prof. Dr. Gazy Andraus, trás informações imagéticas "que deflagra e ativa certas áreas do hemisfério direito do cérebro, enquanto que os fonemas e o cartesiano deflagram-se e ativam o esquerdo. Assim, usar quadrinhos (arte em geral) no ensino, auxilia numa inteligência sistêmica e não pende quase que exclusivamente ao racional e cartesiano, o que atrofia a inteligência criativa", sendo assim seu uso na educação traria um maior "equilíbrio mental salutar na cabeça do aluno, não importando que idade...já que a mente é neuroplástica" (Gazy Andraus, Carta  em contra-resposta ao texto de Gilberto Dimenstein questionando que gibi seja cultura, lista AGAQUE-L: agaque-l@listas.usp.br).
         Resumindo a ópera: não levem a sério as palavras de Gilberto Dimenstein, ele não sabe o que fala, e não é necessário acreditar neste colunista, basta ler obras como: Watchmen ou Promethea de Alan Moore, absolutamente qualquer obra de Will Eisner, as tiras de Charlie Brown, Calvin e Haroldo, Mafalda, entre outras, inclusive algumas publicadas no Jornal Folha de São Paulo, que abre espaço para esta "incultura", e é também a publicação de onde também fala Dimenstein.
        Também podemos citar Maus de Art Spiegelman que ganhou o prêmio Pulitzer, as obras de Osamu Tezuka, tema dos últimos quatro textos publicados neste espaço por nós, até HQs populares, como Tex, que acaba de ter publicado nas bancas um fantástico álbum intitulado Patagônia, e por ai vai. Lembramos também de Ziraldo e do conhecido Mauricio de Souza e sua Turma da Mônica, para ficar com a mais popular história em quadrinhos brasileira, sempre tratando de temas envolventes. Lógico que tamanha é a profundidade temática e imagética das histórias em quadrinhos que poderia fazer uma lista de umas duas centenas de obras aqui, e ainda assim seria pequena e parcial, mas isso pouco adianta para Gilberto Dimenstein, que sequer tem a preocupação de ler as HQs publicados no próprio jornal em que escreve. 
         Por isso leitor vá às obras, e sempre desconfie quando alguém achar que pode servir de policia cultural, isso nunca é bom, e sempre esta a serviço de algum programa político, mesmo quando o autor não explicita qual.
        Afinal não sei se "gibi" é "cultura", mas que as histórias em quadrinhos fazem parte da grande diversidade das culturas humanas, isso faz.
Edgar Indalecio Smaniotto
Filósofo, mestre e doutorando em Ciências Sociais pelo programa de
pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP – Faculdade de Filosofia e
Ciências de Marília.
Artigo publicado no Jornal Graphiq, Dezembro de 2009, página 3.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

MUSEU DA CORRUPÇÃO

Vale muito a pena visitar o site MUSEU DA CORRUPÇÃO criado pelo Diário do Comércio.
No "saguão principal" do museu existem várias galerias virtais que apresentam os principais escândalos ocorridos no País desde a década de 70. Um tour cheio de humor e criatividade que termina numa bela pizza ou na lojinha da "instituição", onde o visitante encontra lembranças como camisetas, algemas, aparelhos de escuta, malas pretas e até propinas virtuais.
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O projeto visual é do arquiteto Rodrigues de Araújo Moreira e remete ao Louvre, com uma “citação” à famosa pirâmide de vidro.
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O site está em permanete construção - já que o mundo perfeito não chega tão cedo - e estuda-se uma plataforma wiki na qual os internautautas poderão enviar informações e contribuiçõres.
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Um trabalho louvável e certamente um grande remédio para a memória curta dos brasileiros.
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não deixe de visitar: http://www.museudacorrupcao.com.br/

domingo, 23 de agosto de 2009

Kant pelas mãos de Ferry


"A filosofia ainda tem o dever de responder
às três questões fundamentais
da teoria, da ética e da sabedoria,
isto é, do sentido da vida"

O pensamento de Immanuel Kant, o "mestre de Königsberg", está no centro da filosofia moderna. Suas três maiores obras, "Crítica da Razão Pura", "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento", publicadas entre 1781 e 1790, marcaram uma ruptura definitiva com a metafísica clássica, herdada dos gregos, e inauguraram a era do humanismo secular. Em pleno Século das Luzes, os escritos éticos, políticos e estéticos de Kant pautaram em grande medida o debate de ideias dos últimos 200 anos.

A leitura do filósofo alemão não é fácil, mas Luc Ferry, um dos principais disseminadores da filosofia para o público geral na França, assumiu a tarefa de explicar suas principais ideias no livro "Kant: uma Leitura das Três Críticas" (Difel). Embora escreva para leigos, Ferry faz questão de não simplificar nem banalizar o pensamento que interpreta. Ao contrário, seu objetivo é guiar a leitura de quem queira mergulhar por inteiro na obra de Kant. Já na introdução, ele adverte: "É impossível entrar na filosofia sem tomar o tempo de entender em profundidade ao menos um grande filósofo".

Conhecido por suas críticas ao pós-modernismo, às correntes mais ingênuas do pensamento ecológico e à globalização sem controle, Luc Ferry é atuante em política como membro da UMP, partido do governo francês. Ele foi ministro da Educação entre 2002 e 2004.
Nesta entrevista, Ferry comenta a política da globalização, os paradoxos da modernidade e a promiscuidade entre a arte contemporânea e o mercado.

Valor: Ainda se pode conceber uma filosofia que produza um sistema como o de Kant? O que pode a filosofia hoje?
Luc Ferry: A forma do "grande sistema" é prisioneira de uma ideia herdada da teologia, segundo a qual a filosofia deve totalizar todos os saberes sob a égide de um princípio único. Ninguém pode mais pensar assim. Isso dito, a filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida. Em outras palavras: o que é o conhecimento; como definir o bem e o mal, o justo e o injusto; e como pensar o sentido de nossa vida. Como, em particular, atingir uma serenidade que passa sempre, ontem como hoje, por uma vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de levar uma boa vida. Nesse sentido, o ideal da "grande filosofia" ainda é atual, mesmo se não assume mais a forma metafísica e ilusória do "sistema".

Valor: Kant transpõe a revolução copernicana para a filosofia. De lá para cá, tivemos outras revoluções científicas, como a mecânica quântica e a cibernética. Como elas afetam o kantismo?
Ferry: Articular a filosofia de Kant com a ciência moderna é perfeitamente natural. O mesmo acontece com Newton, que constitui uma parte da física moderna. É preciso compreender as revoluções newtoniana e kantiana por meio do terremoto intelectual e moral que representa a passagem da cosmologia grega para a física moderna, a ruptura abissal que separa o "mundo fechado" dos antigos e o "universo infinito" de Galileu e Newton. Toda a filosofia de Kant tem um único objetivo: construir o novo edifício do humanismo moderno por cima das ruínas de uma ordem cósmica esgotada. Com a ideia de cosmos, os gregos consideravam o universo como um ser ordenado e animado, cujos órgãos foram concebidos em harmonia com o conjunto. Era isso que a física dos antigos conclamava os humanos a reconhecer e sua ética lhes recomendava imitar. Depois da revolução científica, o universo é um caos infinito e desencantado, sem outro valor senão o que lhe atribuímos. É um campo de forças que se organizam, claro, mas em choque, sem harmonia nem significado. É daí que parte Kant: se o mundo é um caos, um tecido conflituoso de forças, passa a ser "do exterior", pela força do espírito, que o sábio reintroduz a ordem e o sentido na realidade. Essa será a tarefa da ciência moderna. Ela não reside mais na contemplação, que os gregos chamavam de "teoria", mas numa elaboração ativa de leis que deem coerência a um universo desencantado.

Valor: O último capítulo trata da ideia de racionalização política no idealismo alemão em face da Revolução Francesa. Hoje, a era das revoluções está superada, mas no lugar do realismo o que se vê é desilusão com a política. Por quê?
Ferry: A ideia revolucionária morreu, desqualificada para sempre pelo fracasso da URSS e demais regimes totalitários. Isso dito, é verdade que a globalização liberal suscita grunhidos de ódio, agrupados em torno da ideia multiforme do altermundialismo. Nos anos 30, na Europa, o mundo liberal provocava dois tipos de crítica: as que evocavam a restauração de um passado perdido e as que imaginavam um "futuro radiante". Umas desembocaram no fascismo; as outras, no sovietismo. Esses modelos de referência foram desacreditados pela história. Porém, não sobrou muito mais que o gesto da crítica, depois que os modelos positivos, que podiam lhe conferir um sentido "construtivo", desapareceram. Teremos de aprender a fazer uma "crítica interna" ao mundo democrático-liberal. Por exemplo, exigir que esse modelo cumpra as promessas de liberdade e igualdade, bastante negligenciadas. Daqui por diante, a crítica interna será a única realmente subversiva.

Valor: O pós-modernismo, que o sr. critica em "O Pensamento 68", está morto? O que sobra depois que tudo foi relativizado?
Ferry: Sim, está morto e enterrado, não inspira mais nada, nem mesmo a crítica. Aliás, toda a história das vanguardas e da "boemia", sobre a qual estou escrevendo um novo livro, repousa sobre um paradoxo. Na fachada, eram "rebeldes" e "antiburgueses". Na verdade, encorajaram a emergência da sociedade de consumo. De fato, era preciso que os valores tradicionais fossem desconstruídos por jovens rebeldes para que os velhos burgueses pudessem enriquecer. Por quê? Isso ficou claro hoje: se minhas filhas tivessem os valores de minha bisavó, elas não comprariam três celulares por ano! Era preciso derrubar as tradições para que o consumo vencesse. Não é por acaso que, hoje, as corporações são os maiores promotores da arte contemporânea!

Valor: O que a estética de Kant diria sobre a arte contemporânea?
Ferry: A arte se afastou explicitamente da ideia de beleza que Kant tentava pensar. Kandinsky e Schoenberg, em 1910, repetem sem cessar que é uma noção "ultrapassada" e derrisória. A estética de Kant é dominada pela questão, na minha opinião apaixonante, de definir os critérios do belo. Kant e Hume se perguntam, por exemplo, como podemos dizer que "o gosto é subjetivo", se há um consenso tão vasto sobre as "grandes obras", mais até do que na ciência. Não se ouve muito que "Mozart é uma porcaria" ou "Vermeer é muito feio". Já a arte contemporânea se tornou uma arte "de mercado". É comprada pelos grandes burgueses, fascinados com a lógica da inovação pela inovação, que pertencia aos artistas "boêmios", mas virou o pão de cada dia desses capitães da indústria. O executivo que vende celulares sabe que, se não inovar constantemente, como Duchamp ou Picasso, está fora do mercado. A arte contemporânea não se interessa pela ideia de beleza. Os empresários tampouco. A originalidade a qualquer preço é mais importante. Nisso estão de acordo com nossa época de globalização liberal.
Protesto contra a caça de animais na Europa:
para Ferry, ecologistas põem o dedo
numa ferida maior que a questão ambiental,
algo que chama de "privação democrática
"

Valor: As últimas eleições europeias consagraram os partidos ecologistas. A ecologia pode ser um programa verdadeiramente político?
Ferry: Não. Mas ela põe o dedo numa ferida maior, não tanto a questão ambiental, mas aquilo que chamo de "privação democrática". No universo globalizado, as políticas nacionais são privadas, pouco a pouco, de todos os meios eficazes de ação e reforma. Os altermundialistas se enganam ao acreditar que, atrás dos mercados financeiros, há "peixes grandes", "os poderosos", que, como marionetistas, manipulam às escondidas. Se fosse verdade, seria ótimo: pelo menos, haveria um culpado! Mas isso não passa de uma visão ingênua. O mundo, dominado pelos mercados financeiros, nos escapa e a questão da "governança mundial" é mais importante que nunca. Como retomar as rédeas? Eis a questão central da política moderna e mesmo a única que importa.
Reportagem de DIEGO VIANA, para o Valor, de Paris, 21/08/2009

A utopia possível na sociedade líquida

O sociólogo afirma que é preciso acreditar no potencial humano
para que um outro mundo seja possível
  
03/08/2009
   
Dennis de Oliveira
    
Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante
Foto: Reprodução/Creative Commons
a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista.
             
Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de "modernidade líquida" para definir o presente, em vez do já batido termo "pós-modernidade", que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.
        
Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual;
o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.
  
      
CULT - Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?
               
Zygmunt Bauman - Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que "nós, seres humanos, podemos fazê-lo", crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.
       
          
CULT - Por que se fala tanto hoje de "fim das utopias"?
             
Bauman - Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o "equilíbrio natural". A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo

Foto: Reprodução/Creative Commons
os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.
        
Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza.
         
Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas "daninhas". É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.
      
        
CULT - O que isso significa para a humanidade de hoje?
        
Bauman - Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado.
              
Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma "associação de caçadores", se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.
              
Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de "individualização".
         
E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com "consciência ecológica" servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de "desregulamentação".
             

"Para que a utopia renasça, é preciso a confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo"




   
     
CULT - Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?
            
Bauman - É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo.
     
Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, "as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo". E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de "jardineiros", favorecem a caça e os caçadores da vez.
           
O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como "fantasia", "fantástico", "fictício", "impraticável", "irrealista", "pouco razoável" ou "irracional". Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.
Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria "morto". Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que "Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores".
         
Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.
  

"A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo"


       
     
CULT - Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?
        
Bauman - A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, "o Brasil é o único local com sol no inverno", neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado.
     
Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve "causar" na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.
       
O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando - e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas - abandonando-as, livrando-se delas -, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.
     
           
Leia, na íntegra, o texto inédito de Zygmunt Bauman, intitulado O triplo desafio

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

da série "Ótimos Trechos" - BAUMAN


Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências; a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas; um eterno vestir e despir de identidades. São ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências.

vivem num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar.

exigem um desmantelamento das coações politicamente impostas, o corte dos tributos e despesas públicas em nome da privatização do uso dos recursos e assim uma maior liberdade do consumidor.

observamos a crescente indiferença do estado para com sua antiga tarefa de promover um modelo de ordem tanto singular como abrangente.

Segundo cálculos cautelosos e, se faz diferença, conservadores, a rica Europa conta entre seus cidadãos cerca de três milhões de desabrigados, vinte milhões de expulsos do mercado de trabalho, vinte milhões que vivem abaixo da linha da pobreza; consumidores falhos; pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor, incapazes de ser "indivíduos livres" conforme o senso de "liberdade" definido em função do poder de escolha do consumidor. São a “sujeira” da pureza pós-moderna.

como são um sorvedouro dos fundos públicos e por isso, indiretamente, do “dinheiro dos contribuintes”, eles precisam ser detidos e mantidos em xeque ao menor custo possível. Se é mais barato excluir e encerrar os consumidores falhos para evitar-lhes o mal, isso é preferível ao restabelecimento do seu status de consumidores através de uma previdente política de emprego conjugada com provisões ramificadas de previdência. Que vença a oferta mais barata!

o "Segundo Mundo" não existe mais: suas antigas nações membros desperataram para o "túnel no fim da luz". Assim como o terceiro mundo. Hoje, uns vinte países ricos, mas aflitos e incertos de si próprios, enfrentam o resto do mundo, que ja não se inclina a venerar as suas definições de progresso e felicidade, mas cresce a cada dia mais dependente deles, para preservar qualquer felicidade ou meramente a sobrevivência que possa conseguir, penosamente, com seus próprios meios. Talvez o conceito de "barbarização secundária" englobe melhor o impacto global do metropolitanato dos nossos dias sobre a periferia do mundo.

O desvio do projeto da comunidade como defensora do direito universal à vida decente e dignificada para o da promoção do mercado como garantia suficiente da universal oportunidade de auto-enriquecimento aprofunda mais o sofrimento dos novos pobres, a seu mal acrescentando o insulto, interpretando a pobreza com humilhação e com a negação da liberdade do consumidor, agora identificada com a humanidade.
o consumidor, não mais a humanidade.


Trechos do livro “O Mal Estar da Pós-Modernidade” de Zygmunt Bauman (1997)

ARRUDA & VEJA- Secretaria de Educação

O governador do DF assinou um contrato, através da Secretaria de Educação do DF, de R$ 442 mil com a Editora Abril, sem licitação, para garantir a distribuição da REVISTA VEJA NA SALA DE AULA, nas escolas públicas do DF.

Em troca, pela boa parceria comercial, a Revista VEJA publicou na edição da semana passada, nas suas páginas amarelas, uma entrevista mais do que elogiosa ao governador.

Isto é que é liberdade de imprensa e expressão!!!

CADÊ A CPI?

Você Sabia? 3.0

Fim da exigência do Diploma de jornalista abre novas formas de lutas pós mídias digitais

Finalmente caiu o diploma de jornalista! Em votação histórica no Supremo Tribunal Federal.

O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo no Brasil (como em tantos paises do mundo inteiro) abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da Comunicação pós-midias digitais, bem mais interessantes que o velho muro das lamentações corporativas. Agora, será necessário constituir novos “direitos” para jornalistas e não-jornalistas, free-lancers, blogueiros e midialivristas terão que inventar novas formas de lutas, comuns.

O fim do diploma tira da “invisibilidade” a nova força do capitalismo cognitivo, as centenas e milhares de jovens free-lancers, autônomos, midialivristas, inclusive formados em outras habilitações de Comunicação, que eram impedidos por lei de fazer jornalismo e exercer a profissão e que, ao lado de qualquer jovem formado em Comunicação, constituem hoje os novos produtores simbólicos, a nova força de trabalho “vivo”.

Vamos finalmente sair do piloto automático dos argumentos prontos “de defesa do diploma” que sempre escamotearam alguns pontos decisivos:

1. O fim da exigência de diploma para trabalhar em jornalismo não significa o fim do Ensino Superior em Jornalismo, nem o fim dos Cursos de Comunicação que nunca foram tão valorizados. Outros cursos, extremamente bem sucedidos e disputados no campo da Comunicação (como Publicidade) não tem exigência de diploma para exercer a profissão e são um sucesso com enorme demanda. A qualidade dos cursos e da formação sempre teve a ver diretamente com projetos pedagógicos desengessados, com consistência acadêmica, professores de formação múltipla e aberta, diversidade subjetiva e não com “especificidade” ou exigência corporativa de diploma.

2. As empresas de jornalismo e comunicação são as primeiros a contratarem os jornalistas com formação superior. NA UFRJ, por exemplo, os estudantes de Comunicação e Jornalismo são “caçados” pelas empresas que dão preferência aos formados, com nível superior em Comunicação, por que mudariam?

3. Esse papo de “quem é contra o diploma faz o jogo do patrões”, é uma velha ladainha, repetida no piloto automático da frases feitas. Raciocínio que é bem mais conservador e retrógrado que o próprio discurso das empresas/mercado que precisa empregar quem tem formação de qualidade. Que precisa de profissionais qualificados,capazes de entender os novos ambientes pós-digitais, capazes de fazer redes e de inovar em diferentes campos.

4. Os jornais já burlam a exigência de diploma pagando os MAIORES salários da Redação aos não-jornalistas, cronistas, articulistas, editorialistas, muitos SEM diploma (a exigência de diploma nunca alterou esse quadro!). As Universidades não precisam formar os “peões” diplomados, mas jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das corporações, não profissionais “para o mercado”, mas capazes de “criar” novos mercados, jornalismo público, pós-corporações.

5. Nada justificava a “excepcionalidade” do diploma para os jornalistas que criou uma “reserva de mercado” para um pequeno grupo e que diminuía a empregabilidade de jovens formados em cinema, rádio e TV, audiovisual, publicidade, produção editorial, etc. proibidos pelo diploma de exercer…..jornalismo.

Até agora, nenhuma entidade corporativa defendeu nem pensou em uma SEGURIDADE NOVA para os free-lancers, os precários, os que não tem e nunca terão carteira assinada. É hora das associações, federações, sindicatos mudarem o discurso do século XIX e entrarem no século XXI buscando uma nova forma de SEGURIDADE PARA OS PRECÁRIOS, OS NÃO DIPLOMADOS, OS MIDIALIVRISTAS, o fim do diploma aponta para essas novas lutas.

O raciocínio corporativo constituiu até hoje uma espécie de “vanguarda da retaguarda”, discurso, fabril, estanque, de defesa da “carteira assinada” e “postos de trabalho “, quando no capitalismo cognitivo, no capitalismo dos fluxos e da informação o que interessa é qualificar não para “postos” ou especialidades (o operário substituível, o salário mais baixo da redação!), mas para CAMPOS DO CONHECIMENTO, para a produção de conhecimento de forma autônoma e livre, não o assujeitamento do assalariado, paradigma do capitalismo fordista.

A idéia de que para ter “direitos” é preciso se ‘assujeitar” a uma relação de patrão/empregado, de “assalariamento”, é uma idéia francamente conservadora!

O precariado cognitivo, os jovens precários das economias criativas estão reinventando as relações de trabalho, os desafios são enormes, a economia pós-Google não é a Globo fordista, não vamos combater as novas assimetrias e desigualdades com discursos e instrumentos da revolução industrial.

Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas pelos novos movimentos sociais de organização e defesa do precariado, lutar pela AUTONOMIA fora das corporações, para novas formas de organização e seguridade do trabalhador livre do PATRÃO E DA CORPORAÇÃO.

A General Motors nos EUA e as fábricas fordistas não vão falir sozinhas, levarão juntos o capitalismo fabril, patronal, corporativo e o arsenal conceitual, os discursos, que não conseguem mais dar conta, nem explicar, as mudanças.

Acabou o diploma de Jornalismo, mas o diploma/formação de Comunicação nunca foi tão importante! Vamos agora pensar o jornalismo público, o jornalismo do comum! E, antes que eu me esqueça: isso não tem nada a ver com “neoliberalismo”, vamos parar de repetir duas ou três frases clichês!

Existem hoje “revoluções do capitalismo” (titulo do belo livro de Mauricio Lazaratto, inspirado em Antonio Negri e Gilles Deleuze).

Não é a toa que a garotada prefere ir para as Lan Houses ao invés de entrarem para as corporações.

A Comunicação e o jornalismo são importantes demais para serem “exclusivas” de um grupo de “profissionais”. A Comunicação e o jornalismo hoje são um “direito” de todos, que será exercido por qualquer brasileiro, com ou sem diploma.

O capitalismo cognitivo está constituindo um novo processo de acumulação globalizado, que tem como base o conhecimento, as redes sociais, a comunicação, o “trabalho vivo” (Negri. Lazaratto. Cocco), existem, claro, novas formas de exploração e assujeitamento, mas também novas formas de luta!

Adeus ao proletariado fabril, diplomado ou não, viva o precariado cognitivo, os Pré-Cogs que estão chegando e são a base da comunicação, base das tecnologias da informação, base da economia do conhecimento, que alimenta a inovação e as novas lutas.

Viva a formação superior em Comunicação, em Jornalismo, viva as Escola Livres de Jornalismo e as novas dinâmicas mundanas de ensino/aprendizado e trabalho “vivo”.


Publicado na Revista Carta Capital por Ivana Bentes: Professora e diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, é formada em Comunicação com habilitação em jornalismo, especialização em Filosofia, autodidata em audiovisual e estuda novas mídas on-line.

Democracia e Mídias Sociais – Proposta de um novo modelo democrático

            Em épocas de eleições, muito se ouve falar sobre a importância de exercermos nosso direito e dever como cidadãos de votar. Mas será que nossa participação política e esse nosso exercício de cidadania se restringe a depositar de quatro em quatro anos nossos votos na urna, e escolher o candidato "menos pior" entre os disponíveis num cardápio já pronto (e do qual não tivemos participação na elaboração)? Creio que esse cenário de participação política que a democracia representativa possibilita é muito triste e afasta do cidadão a possibilidade de tomada de decisões sobre questões realmente importantes. Afinal, escolher quem vai decidir no nosso lugar não é ter poder de decisão, é o contrário disso; principalmente, se não temos a garantia de que esse representante decidirá o que decidiríamos (e na maioria das vezes não decide).

    Portanto, criar o mito que o problema democrático é o de escolher bons políticos (ou o "menos pior", afinal, em algumas eleições nenhum pode ser considerado bom) é responsabilizar o cidadão-eleitor pelas mazelas sofridas pela sociedade. Ou seja, a sociedade anda mal porque os cidadãos não sabem escolher e elegem maus políticos. De vítima o cidadão vira culpado, o responsável pelas falhas do sistema democrático representativo. Mas o que a maioria de nós não percebe é que é o próprio modelo de democracia representativa que é débil e precisa ser urgentemente substituído. O que precisamos eleger (e exigir) é um novo modelo de democracia, não novos políticos e representantes. Mas qual?

    Bem, antes de qualquer coisa, cabe ressaltar que essa discussão que estou puxando já parte do pressuposto que o melhor modelo ou o modelo quase unânime a ser aplicado numa sociedade é a democracia, portanto, caberia escolher qual o modelo democrático mais consistente. Afinal, a democracia é uma proposta heterogênea e existem várias formas de concebê-la, vários modelos em disputa, apesar do modelo representativo ser o que atualmente é mais adotado na maior parte do mundo democrático. É claro que essa hegemonia da democracia representativa não se deu historicamente de forma tão "democrática", mas foi imposta às sociedades por relações políticas nem sempre pacíficas.

    Mas porque o modelo de democracia representativa com todas as suas falhas ainda persiste? Primeiro, a maioria das pessoas nem sabem que possuem o direito de pensar sobre mudar o modelo, acham que isso é impossível e que temos que nos contentar com o que está posto (se isso fosse verdade ainda estaríamos na monarquia); outros tantos acreditam que já chegamos a um modelo político ideal que precisa, apenas, ser fortalecido (principalmente nós latino-americanos que saímos traumatizados das ditaduras militares). Já que outro modelo de democracia não só é possível como necessário, temos que conduzir a discussão além da mera crítica ao modelo representativo de democracia e avançarmos no sentido de propor um modelo democrático substitutivo, que consideramos mais consistente e apropriado aos anseios sociais.

   O modelo considerado mais "maduro" atualmente pelos acadêmicos é o modelo de democracia deliberativa, onde cada cidadão teria a oportunidade de participar das discussões públicas envolvidas em processos deliberativos no sentido de expor suas convicções e convencer (ou ser convencido por) seus interlocutores sobre qual melhor tomada de decisão. A democracia seria um jogo discursivo onde vence o melhor argumento, o mais amarrado, convincente, moderado e racional, o que se tornaria consensual. Em primeiro lugar, acho que essa proposta é ingênua ao buscar um consenso impossível e acaba excluindo da democracia a própria política que, segundo Rancière, é o desentendimento e o dissenso, não o consenso e o entendimento mútuo. Ou seja, no modelo de democracia deliberativa temos muita conversa e pouca ação política, já que a maioria da população fica excluída da deliberação, pois seu discurso ou é desqualificado de antemão (por causa da sua posição social ou grau de escolaridade), ou é destoante do discurso consensual (os proponentes desse modelo parecem desconhecer a hipótese da espiral do silêncio) ou mesmo porque nem é compreendido.

    Já os mais libertários propõem o modelo de democracia direta, onde no lugar de eleger representantes políticos, cada cidadão teria poder de voto e decisão sobre todas as questões e propostas em litígio. Os mais céticos criticam essa proposta, alegando que vivemos atualmente em sociedades complexas demais para que os cidadãos pudessem acompanhar e votar "conscientemente" sobre todas as questões; já os mais cínicos alegam que não é todo cidadão que tem condição de votar sobre assuntos que só poucos iluminados entendem. Pensando nessas críticas, os adeptos da democracia direta começam a propor modelos de democracia menos "radicais" e mais viáveis.

    Uma dessas propostas é o modelo de democracia líquida, um sistema misto entre democracia direta e democracia representativa, no qual os representantes do Povo são designados para votar em cada tema, ao invés de serem eleitos para um mandato amplo, com duração específica. Na democracia líquida as votações se realizam por um mandato específico para uma determinada questão, e é suplementado por uma recomendação de ação (uma análise da questão em debate feita por especialistas na matéria, pró e contra). Em alguns casos, na democracia líquida, o mandato específico pode ser delegado. Um exemplo colocado em prática dessa proposta aconteceu na Suécia, através do Demoex. O Demoex é tanto um partido político sueco quanto uma experiência em democracia líquida, com votações pela internet. Segundo seus fundadores, uma das razões de sua criação, além do desencanto generalizado com os políticos tradicionais, foi o fato de que na democracia representativa a opinião do Povo só é consultada uma vez a cada quatro anos. E após serem eleitos, os políticos tradicionais podem agir praticamente como bem entenderem até a próxima eleição. Essa falha democrática do modelo representativo levou um grupo de estudantes e professores a fundar o Demoex, sem ideologia (nem de direita, nem de esquerda, muito menos de centro), sem plataforma, e sem sede física, e que só tinha uma promessa: a democracia direta. Esse partido concorreu às eleições municipais em setembro de 2002, e obteve um único assento na câmara municipal de Vallentuna. Atualmente o sistema opera de forma que o representante eleito para a câmara vote de acordo com os resultados das votações online feitas pelos membros do partido. A estudante Parisa Molagholi, na época com dezenove anos (isso mesmo, 19 aninhos!), foi eleita em 4 de novembro de 2002 (com 1,7% dos votos) para a câmara municipal da cidade de Vallentuna (um subúrbio de Estocolmo), e tem causado espanto aos políticos tradicionais nos últimos anos. Molagholi, que foi reeleita em 2006 com 2,9% dos votos, como representante do Demoex, criou uma maneira inteiramente nova de participação na política. Ela não vota de acordo com suas convicções, nem de acordo com as instruções de seu partido: seu voto oficial na câmara municipal depende do resultado de uma votação online, que é realizada previamente no website do Demoex. Qualquer residente de Vallentuna que tenha completado 16 anos pode se registrar no site, e participar das votações; e qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo, pode participar dos debates e opinar sobre as questões políticas da Suécia e as tomadas de decisão de seus políticos. A ideologia do Demoex fundamenta-se nos princípios enumerados por Karl Popper e Henri Bergson sobre a sociedade aberta; isto é, uma visão da sociedade construída sob os princípios do acesso público às informações oficiais, em outras palavras, na "transparência". Demoex luta pela maior facilidade de acesso e de compartilhamento na política. Numa entrevista à Rádio Suécia, os membros do Demoex declararam que os partidos políticos tradicionais não apreciam essa experiência, porque ela coloca em questão a própria existência dos partidos representativos.

    Outra proposta de modelo democrático pensado para substituir o modelo de democracia representativa é a democracia emergente, um modelo democrático viável numa época de mídia social e web 2.0. A democracia emergente é um possível efeito da blogosfera. A idéia presente é a de que as velhas mídias massivas e comerciais fazem as sociedades serem mais aristocráticas, uma vez que suas discussões são controladas pela esfera midiática criada por um complexo midiático corporativo, enquanto a esfera mediática da blogosfera, onde qualquer um pode não apenas ter acesso às informações, mas também produzí-las e distribuí-las, coloca o controle da discussão política nos dedos de uma maior parcela da população.

    Em sintonia com essa proposta surge também a idéia de democracia pessoal. Tal discussão surgiu no contexto da democracia dos EUA, tentando estabelecer uma articulação entre participação política e tecnologia. Trata-se de pensar como a participação pessoal de cada um pode ser revigorada e potencializada pelas ferramentas da media social e da web 2.0, que abrem o processo democrático para o engajamento de mais pessoas em todas as coisas que os cidadãos podem e devem fazer juntos. Segundo os participantes do fórum, a conversação presente nas redes pessoais de cada cidadão (redes de amigos, contatos e familiares) estão revitalizando a conversação cívica. Mais e mais pessoas, hoje em dia, estão descobrindo esse novo poder. Depois de anos sendo tratados como sujeitos passivos do marketing ou/e da manipulação de políticos e profissionais da mídia, os cidadãos estão desejando agora tomar a frente do jogo democrático. A democracia se torna pessoal porque cada cidadão passa a escolher em que discussões e processos de organização e de tomada de decisões eles querem participar, e a compor sua rede pessoal a partir de sua filiação a quantas redes sociais que ele deseja participar.

    Como podemos ver, esses modelos de democracia são alternativas ao modelo representativo, mas o que continuam tendo em comum com esse modelo hegemônico é pensar a democracia em um contexto local; ou seja, acreditam que a democracia é um sistema que deve ser estabelecido e uma questão que deve ser enfrentada dentro de cada Estado-nação. Mas a questão que persiste é a seguinte: mesmo que cheguemos a estabelecer um modelo mais democrático de governabilidade, dentro de um contexto nacional, que efetividade política tal conquista teria na tomada de decisões num contexto de globalização e de governança supranacional?

    Antonio Negri e Michael Hardt consideram que a democracia atualmente só pode ser realmente uma proposta "democrática" se deixar de ser uma questão ou um sistema pensado num contexto nacional. Por isso eles propõem uma democracia absoluta ou da multidão. Mas como essa democracia seria possível? Para Negri e Hardt o projeto moderno e dominante de democracia não só nunca se realizou, como é irrealizável hoje em dia. A noção moderna de democracia foi baseada em instituições representativas do espaço nacional, limitadas e dependentes da soberania nacional. O que estava representado nas instituições nacionais democráticas era o povo e, assim, a soberania nacional moderna tendia a tomar a forma de soberania popular. A nação só é soberana quando o povo é soberano. O problema é que o povo não é uma entidade natural nem empírica, é apenas mais uma representação que faz da população uma unidade. Para Negri e Hardt, o povo não é uma identidade imediata nem eterna, mas, antes, o resultado de um processo complexo apropriado a uma formação social e a um período histórico específico. E o povo só pode ser soberano enquanto uma identidade e uma unidade. E o elemento fundamental para a construção do povo é a representação; o mecanismo da representação é aquilo que processa a multiplicidade empírica da população e a transforma numa identidade. Esse mecanismo de representação se baseia numa noção de medida: só o que pode ser medido pode ser representado como uma unidade. O imensurável não pode ser representado. A noção de povo passa, então, a estar intimamente ligada ao espaço nacional: aquilo que é medido e limitado.Porém, a passagem para o que Negri e Hardt denominam Império faz com que o espaço nacional perca a sua definição, já que as fronteiras nacionais (embora ainda importantes) se relativizam e o próprio imaginário nacional fica desestabilizado. Os mecanismos institucionais e políticos da representação perdem a sua medida e a representação popular fica minada de uma forma básica e fundamental. A impossibilidade de representação do povo se torna cada vez mais clara e, assim, o próprio conceito de povo tende a se evaporar. Torna-se impossível representar institucionalmente o povo e captá-lo como sujeito político da democracia representativa, já que não contamos mais com uma autoridade nacional soberana que, de fato, represente o povo.

   A partir dessa constatação, Negri e Hardt nos fala da necessidade de explorarmos novas formas de democracia, não representativas ou representativas diferentemente. O objetivo seria descobrirmos uma democracia adequada ao contexto imperial. Se o povo é um produto da representação, e essa representação é fundada numa soberania nacional em crise, temos que deslocar o nosso enfoque conceitual do povo para a multidão. Enquanto o povo é fortemente configurado como produto do ato contratual constitutivo da sociedade burguesa, como explica Hobbes, a multidão não pode ser captada em termos de contratualismo. Segundo Negri e Hardt, por ser uma multiplicidade imensurável, a multidão desafia a representação, ou mesmo, não é passível de ser representada. O que tradicionalmente fez a miséria da multidão (não poder se constituir em unidade política representável), hoje constitui a sua riqueza, pois o poder não sabe o que fazer com ela; e a multidão não precisa da relação de soberania, vive em êxodo. Por isso é capaz de criar uma democracia absoluta, de maneira autônoma, que nada tem a ver com a democracia representativa – essa que, junto com a monarquia e a aristocracia, compreende as formas clássicas de governo. A multidão, hoje, para esses autores, é o único sujeito social e político capaz de realizar essa democracia absoluta que é o governo de todos por todos, e não o governo da maioria (democracia representativa do povo). A democracia é a forma pela qual a multidão (por meio da interação das singularidades) expressa vontade comum, (não a "vontade geral", do povo) que não possui um fora (poder soberano transcendente), que é totalmente autônoma, e que, portanto, Negri e Hardt chamam de "vontade absoluta".

   Pensando em tudo que foi discutido até agora, lanço-me ao desafio de pensar sobre qual modelo de democracia eu considero mais viável, desejável, democrático e mais próximo dessa democracia multitudinária proposta por Negri e Hardt; e mais consistente e eficaz dentro do contexto supranacional e globalizado do Império. O modelo que proponho é um misto de democracia líquida, emergente, deliberativa, pessoal e multitudinária. Pensei nele levando em conta que vivemos em sociedades complexas onde nenhum cidadão tem condições de se interar e participar consciente e ativamente de tudo que precisar ser discutido, proposto e decidido numa democracia. Nele cada cidadão possuiria uma "senha-mestre", com a qual ele poderia criar uma senha para cada área de governo ou ministério (cultura, comunicações, saúde, transportes, fazenda, justiça, etc.). Uma vez criadas essas senhas, ele daria cada senha dessa a algum amigo ou pessoa de confiança, que ele julga mais capaz, que ele e os outros, de participar das discussões, criar propostas e tomar as melhores decisões sobre as questões em litígio. No lugar de escolher, de quatro em quatro anos, um representante político (que, na maioria das vezes, ele não conhece pessoalmente), que decidirá por ele sobre todas as questões, o cidadão agora escolhe um representante do seu convívio pessoal para cada área de governo e delega a cada um desses representantes o poder de decidir por ele apenas sobre as questões relativas à sua área específica.

    Nesse modelo o cidadão só iria acompanhar, propor e votar em questões de suas áreas de interesse, aquelas que ele deseja participar ativamente e nas quais ele se sente qualificado e competente para contribuir realmente. Para as demais áreas ele delegaria o poder de voto para representantes que ele possui acesso direto e íntimo. Por exemplo, eu desejo, tenho tempo e me sinto competente para acompanhar e participar ativamente apenas das áreas de Ciência e Tecnologias, Comunicações, Cidades, Educação e Transportes. Nessas áreas eu mesmo vou participar das discussões, propor projetos e votar; além de buscar angariar senhas e o direito de representar pessoas conhecidas (meus amigos, familiares e contatos) que não desejam, não têm tempo e nem se sentem mais qualificados do que eu para deliberar nessas áreas. Nas demais áreas, vou delegar aos meus representantes "pessoais" o direito de deliberar por mim. Cada representante assume o compromisso de utilizar as potencialidades da media social e da web 2.0 (e-mails, mensagens sms, posts em blogs, twitter, digg, softwares sociais, redes sociais, listas de discussão, etc.) para estabelecer uma discussão direta com seus representados, informando-os de todos seus posicionamentos em discussões, suas propostas elaboradas e seus votos em tomadas de decisões; além de justificar todas suas ações. Se algum cidadão, que delegou a determinado representante de área o poder de votar por ele, considerar que o representante não está agindo conforme o desejado, ele não precisa esperar quatro anos para trocar de representante. Ele pode fazer isso a qualquer momento, basta mudar a senha daquela área específica com sua senha-mestre (que também pode e deve ser mudada com frequência, por motivo de segurança) e passar a nova senha para um novo representante; sem mesmo precisar comunicar ao representante anterior a sua decisão –  ele descobrirá que foi trocado quando for usar a senha antiga para votar em nome do representado e não conseguir.

   A meu ver, com esse modelo, obteríamos grandes avanços democráticos, pois, em cada área teríamos um processo de tomada de decisão distribuído, onde em lugar de poucos especialistas propondo e decidindo nosso futuro democrático (como atualmente acontece), teríamos todos eles e mais uma multidão de outros especialistas e cidadãos competentes participando, discutindo, propondo, votando e decidindo sobre o que é melhor para todos. No lugar de vereadores, deputados e senadores (distantes de nós, que só podem ser tirados nas próximas eleições e cuja inteligência, competência e ética são, na maioria das vezes, muito questionáveis em certas áreas) nos representando e decidindo por nós, teríamos representantes "pessoais" (que podemos tirar a qualquer momento), com poderes limitados e que precisariam fazer jus, o tempo todo, à confiança depositada neles. Os únicos representantes que elegeríamos de quatro em quatro anos são os representantes executivos (presidente, governadores, prefeitos, ministros, secretários, técnicos, etc.), mas eles não teriam poder de propor e decidir nada isoladamente, sua função seria apenas executar (como o próprio nome diz) o que foi decidido através desse processo coletivo e distribuído de tomada de decisão, e prestar contas de suas ações.

    Assim como advertiu Negri e Hardt, no atual cenário político global, esse modelo de democracia só seria efetivamente "democrático" se fosse aplicado em todo o globo, onde cada cidadão pudesse decidir diretamente, ou através de seus representantes "pessoais" de área, sobre questões políticas, administrativas e econômicas que antes seriam prerrogativas dos Estados-nações, mas que agora teriam sido transferidas para a esfera supranacional, quer seja para órgãos ou instituições supranacionais, tais como as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), quer seja para os mercados financeiros privados ("Governo Mundial").

    Claro que para um modelo político como esse funcionar todos os cidadãos do mundo precisariam adquirir acesso à Internet e demais tecnologias digitais de comunicação e informação, assim como desenvolver uma capacidade cognitiva para utilizá-las de maneira competente. Mas acredito que esse acesso universal no lugar de ser uma utopia, não demorará muito a se efetivar, pois, como discuti no meu artigo A mobilidade da multidão, a lógica do Império é inclusiva e conexionista, não busca necessariamente a exclusão e a reclusão, embora crie discrepantes diferenciais de mobilidade, acesso e conexão. Outra questão importante também é que a plataforma computacional e informática que servirá de base para esse modelo de democracia deve ser totalmente segura, para se evitar fraudes nas votações, invasão da privacidade e monitoramento dos padrões de tomada de decisão e de delegação de cada cidadão. Isso poderia ser muito bem assegurado através do trabalho colaborativo de milhões de desenvolvedores e hackers espalhados pelo mundo empenhados em detectar falhas de segurança na plataforma, propor correções e desenvolver criptografias mais seguras.

    Bem, esse é o modelo democrático alternativo que pensei como uma proposta de substituição ao modelo de democracia representativa. Como toda proposta democrática, ele não está fechado e nem finalizado, mas aberto para a contribuição de todos para críticas e sugestões de melhorias (que serão muito bem vindas como comentários a esse post); a intenção é inaugurar um fórum para debater o assunto. Por isso, nem pensei em um nome para o modelo, pois pra mim os rótulos são o que menos importa, muito menos quem os propõe. O que importa realmente é nosso compromisso em utilizar nossa inteligência coletiva, nossa competência e capacidade para propor um modelo de democracia alternativo e consistente para sairmos do impasse de ter que engolir esse modelo insatisfatório de democracia representativa que nos é oferecido e alardeado como desejado e o único possível.

    Uma boa atitude para começarmos a nos mobilizar em prol disso seria colocar a legimidade das eleições em crise ao pararmos de compactuar com esse modelo representativo débil, nos recusando a tentar remendar e fortalecê-lo simplesmente através da eleição de nossos próximos representantes. Para isso, uma primeira estratégia seria nos lançarmos à tarefa proativa de fundar, em cada país, um partido nos moldes do Demoex, que não propõe um novo plano de governo de um determinado candidato ou partido, mas um novo modelo de democracia em escala global e um novo governo da multidão. Uma segunda estratégia seria desenvolver uma plataforma piloto, de código fonte aberto, que sustentaria e viabilizaria na prática esse tipo de governo distribuído, colaborativo e bottom-up.  Mãos à obra? E, então, nas próximas eleições, em qual democracia você vai votar?

do blog http://mobilemultitude.blogspot.com/ de Júlio Valentin: Jornalista e professor universitário. Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Atualmente faz doutorado no Labtec/UFRJ sobre como as mídias sociais, a comunicação móvel e as mídias locativas estão sendo usadas para agenciar protestos e ativismo em períodos eleitorais. MC, DJ e produtor musical.